O que é que esse homem está dizendo? E que língua ele fala: catalão? Não, catalão não é. Galego? Não, não é galego. Português não é, com certeza, e espanhol também não. Mas, então, que língua ele fala?
Aquele homem perplexo que se pergunta, não sabe que eu falo “espanhoguês” ou “portunhol“, eu não sei bem. É uma língua que eu estou inventando e é uma língua, de certa forma, cômoda. Eu suponho mesmo que é possível que estejamos gravando o primeiro documento da língua da América Latina integrada.
– Voz viva da América Latina, Darcy Ribeiro[1].
De certa forma cômoda, disse Darcy, o portunhol ou o espanhoguês é uma língua. Na fronteira, ela é própria, ela transita nas margens do rio e das pontes.
Quando vou nas escolas de ensino fundamental para planificar os diversos projetos que faço como docente da Unila, escuto essas línguas tão nossas, que resistem a ser colocadas nos dicionários. É que na fronteira, e nas escolas, nos identificamos com esse fluir de trocas, de moedas, de comidas e também de línguas.
O que seria de nós sem esses sotaques que escutamos? Tão diversos e tão nossos. Na esquina llega o senhor com as chipas e do otro lado hay también alfajor. Esses dias tão nossos são difíceis de viver nas cidades que estão longe da fronteira.
Aqui, eles acham que nós não sabemos de tudo, mas não sabem que, o que aqui vivimos es muy propio.
Tu já cruzaste a comer la parrillada? En Ciudad del Este tem comida indiana e também da Tailândia. Nessa culinária é também próprio cruzar as línguas e inventar formas de nomear a fronteira e as coisas.
É assim também que construímos integração, nas nossas trocas cotidianas, nas conversas, no bar, nas festas e também em nossas casas. Quando você compra um produto do outro lado da fronteira, você costuma ler o rótulo? Já parou para pensar em que língua está escrito? Tenho certeza que até já tentou praticar algumas palavras em espanhol, em Guarani e até em árabe.
Quando o sinal soa na escola, se escutam os ecos das vozes das crianças e suas dinâmicas interculturais: es la hora de la comida! É hora de comer! Mas não apenas no espanhol ou no português, também no Guarani, no árabe e no inglês. Nesse espaço do almoço escolar também tem o arroz e o feijão e poderia ter a chipa e o kibe.

Aqui nessa fronteira não necessitamos ir muito longe para aprender a cantar em Guarani, dançar músicas latinas dos mais diversos ritmos e cores. Essas dinâmicas não conhecem leis e nem decretos.
Se você vier na fronteira poderá perceber que, ao entrar em um salão de cabeleireiros será atendido por um cabeleireiro que fala árabe, uma moça que faz as sobrancelhas que fala Guarani e será recepcionado em espanhol. E já foi ao restaurante chinês? Pode ser atendido em trocas de línguas diversas, afetos e sorrisos. É esta nUEssa fronteira.
Uma vez na aula de pilates falei que estava pronta para a relajaÇÃO e a professora me respondeu: relaxamento?
Ao final entre relajaÇÃO e relaxamento temos duas línguas, e também temos nossa identidade cheia de sotaques e repertórios de línguas. Quando encontro com uma colega da Venezuela que pratica aulas de ginástica comigo, ela sempre me diz: menina, estou há muito tempo aqui na fronteira e este sotaque forte de meu espanhol ainda permanece!
Sempre respondo: que bom! Esse sotaque faz evidência de sua identidade multilíngue, de seus repertórios de línguas.
Escute com atenção na rua da sua casa, as línguas estão aí murmurando, cantando, as vezes em silêncio, as vezes mais fortes, o portunhol está aí..
E você? Tem experiências com as línguas na fronteira? Conte para a gente!
[1] Fonte: Transcrição e tradução ao português da fala de Darcy Ribeiro gravada no disco “Voz Viva de América Latina”. Dirección General de Difusión Cultural, Universidad Nacional Autónoma de México, 1978. Link: http://www.tirodeletra.com.br/ensaios/VozvivadaAmericaLatina.htm Data de consulta: 14 de agosto de 2022