No início de 1950, a Capitania Fluvial dos Portos do Rio Paraná fez uma encomenda no Rio de Janeiro. Eram duas lanchas que seriam batizadas de “Argentina” e “Paraguai”, que deveriam patrulhar as águas da fronteira. Só que tinha um problema: como trazê-las para Foz do Iguaçu? Nos dias de hoje, com tantas conexões rodoviárias, quem iria imaginar ser necessário movê-las pelo mar? A história dessa epopeia reúne estratégia e muita coragem de pioneiros de Foz do Iguaçu, que encararam mais de mil quilômetros de águas da costa do Brasil, também embarcaram “Argentina” e “Paraguai” em vagões, ao longo de quase 600 Km de ferrovia e subiram cerca de 3 mil quilômetros pelas águas do Bacia do Prata. Acompanhem, abaixo.

Barco Schinke
Foto: acervo pessoal de Vilmar Schinke
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Harry Schinke foi um imigrante alemão que chegou em Foz do Iguaçu em 1922, aos 21 anos. Ele era um homem de conhecimentos gerais muito elevados, acima da média para a região no seu tempo. Viveu até 1976 e se tornou uma referência em diversos ramos, incluindo a navegação.

Harrison Schinke, filho de Harry, nasceu em Foz do Iguaçu em 1925, onde também faleceu em 2013. Se tornou um homem do Rio Paraná. Pilotou barcos praticamente a vida toda. Fez parte do quadro de funcionários da Capitania Fluvial, pilotou barcos de turismo e depois ingressou na Segurança Empresarial da Itaipu Binacional.

Tríplice Fronteira
A Tríplice Fronteira nas lentes de Harry Schinke. Fotografia era um hobby deste, que foi um dos pioneiros mais ilustres da região. A imagem é de 1919 e consta do acervo da Biblioteca Pública Municipal.

Harry, que no final dos anos 1940 prestava serviços à Capitania Fluvial, juntamente com seu filho Harrison, fez parte da expedição que saiu de Foz do Iguaçu com destino ao Rio de Janeiro para buscar as lanchas “Argentina” e “Paraguai”. Comandados pelo Sub-Oficial João Cyriaco de Souza Filho, o primeiro desafio foi definir qual seria o caminho mais viável.

A rota

Vilmar Schinke, filho de Harrison e neto de Harry, nasceu em 1958. Em entrevista exclusiva, narrou o episódio do transporte das lanchas e forneceu as fotos que ilustram essa matéria. Vilmar, que também herdou o gosto pela navegação, afirma que quando jovem, ao invés de comprar um “primeiro carro”, seu veículo foi uma “primeira lancha”.

A memória familiar que Vilmar recorda é praticamente uma epopeia. Conhecedor da navegação, ele assegura que para navegar no mar com aquelas lanchas pequenas, de madeira, com motor a diesel, e de no máximo 36 pés, os marujos “tinham que ser corajosos”. E foram. Navegaram do Rio de Janeiro até Porto Alegre.

barco-schinke

As duas lanchas navegando rumo à Foz do Rio Iguaçu. A foto foi tirada de um terceiro barco, o que indica que a comissão teve apoio de pelo menos mais um barco ao longo da travessia.

A comissão estudou cuidadosamente as rotas possíveis para o transporte das lanchas. A primeira rota que descartaram foi navegar até o litoral do Paraná e cruzar o estado em direção ao oeste. Em 1950, a estrada não permitia o tráfego de caminhões para levar as lanchas.

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O caminho pelo litoral de São Paulo até os rios do interior do estado também foi descartado. O principal obstáculo, ao descer o rio Paraná, era contornar as Sete Quedas, hoje submersas pelo lago de Itaipu. Então, decidiram que teriam de atingir a foz do rio Paraná no estuário do Rio da Prata.

Estuário é um ambiente aquático de transição entre rio e mar. O estuário do Rio da Prata reúne a foz dos rios Paraná e Uruguai no Oceano Atlântico.

A forma mais simples de se chegar à foz do Rio Paraná era seguir de barco do Rio de Janeiro com direção a Buenos Aires, na Argentina. O problema, segundo o avô e o pai contavam a Vilmar, é que os estudos preliminares concluíram que aquelas lanchas não ariam as condições do mar no estuário.

A saída foi embarcar as lanchas no trem que partia de Porto Alegre e cruzava o estado rumo a oeste, atingindo a fronteira com a Argentina. Era um percurso de mais de mil quilômetros no mar, em torno de 600 quilômetros embarcados em um trem. Depois ainda era preciso navegar pelo rio Uruguai até atingir a foz do rio Paraná e subir o rio em direção à Foz do Iguaçu.

Mapa trifon
No recém-lançado livro de Frederico Freitas, Nationalizing Nature, o mapa acima (p. 68) explica as possibilidades de o à Tríplice Fronteira nos anos 1930. Nesse mapa é possível ver o caminho percorrido pelos Schinke e a comissão que trouxe os barcos para Foz do Iguaçu (Rio de Janeiro – Porto Alegre – Rio Uruguai (via férrea) – e rio Paraná).

A viagem

Com as informações que temos hoje não é possível saber quantos dias durou a viagem. As imagens e as memórias da família Schinke nos ajudam a compreender como foram os trechos do trajeto. Primeiro, do Rio de Janeiro até Porto Alegre, o desafio foi o mar. Não há registro de incidentes e chegaram bem no destino.

Barco schinke
Uma das lanchas sendo retiradas do mar por um guindaste, em Porto Alegre. (Foto: acervo pessoal de Vilmar Schinke)

A segunda parte do percurso exigia o embarque, viagem e desembarque em Uruguaiana. Vilmar recorda que as cabines das duas lanchas foram desmontadas para evitar acidentes. Os barcos foram acomodados no trem e seguiram pela ferrovia.

Chegando ao destino, os barcos foram montados e o novo desafio foi colocá-los no Rio Uruguai. As fotografias do acervo de Vilmar mostram diversos veículos pesados em ação com o objetivo de aportar os barcos no rio.

barco schinke
As lanchas embarcadas no trem para Uruguaiana. A ferrovia entre Porto Alegre e Uruguaiana foi concluída em 1907. (Foto: acervo pessoal de Vilmar Schinke)

Resolvidos esses problemas, o terceiro trecho do trajeto foi aparentemente o mais simples, se comparado aos anteriores. Uma vez montadas e na água, as lanchas desceram o Rio Uruguai e subiram o Rio Paraná. Apesar de menos complicado que navegar no mar ou trafegar sob um trem, foram mais de 3 mil quilômetros até aportar na Capitania dos Portos.

trator e lancha
Veículos pesados trabalham para colocar as lanchas no rio Uruguai. (Foto: acervo pessoal de Vilmar Schinke)

As lanchas em Foz

De acordo com uma publicação dos anos 1990, Foz Retratos, as lanchas “Argentina” e “Paraguai” chegaram na Capitania em 1952. Formavam parte dos esforços da Marinha para patrulhar o Rio Paraná. Eram barcos consideráveis para os padrões da época, com capacidade para oito tripulantes, equipadas com rádio, motor a diesel e oito beliches.

Vilmar também tem suas próprias memórias com esses barcos. Ele recorda que o pai, Harisson, pilotava a lancha “Paraguai”. Outra lembrança que tem é a de que, na década de 1960, quando ele era criança, elas foram desmontadas. Ele se recorda de brincar sob os restos dos barcos nas imediações da Capitania.

A navegação do rio Paraná

A história do transporte das lanchas “Argentina” e “Paraguai” nos coloca em contato com três gerações da família Schinke. Além dos laços sanguíneos, Harry, Harrison e Vilmar compartilham do gosto pela navegação. Essa história também nos revela a centralidade da navegação para a região da Tríplice Fronteira, antes da Ponte da Amizade.

Harrison Schinke representa a transição pela qual ou a região. Na época em que tudo girava em torno do rio, ele ingressou em uma das instituições mais importantes da fronteira. Fez carreira na Capitania dos Portos, mas também aproveitou a oportunidade trazida com a Itaipu Binacional no final dos anos 1970.

Harrison Schinke
Harrison Schinke pilotando o barco “Itaipu”, em 1977. Na época, com 52 anos, ele levava turistas para mostrar onde seria o lago Itaipu. Já na reserva da Marinha, ele fez parte do quadro da Segurança Empresarial da Itaipu Binacional. Essa é outra história que envolve até mesmo o projeto do barco “Quaraí”, em exposição no Ecomuseu, que merece outra reportagem. (Foto: acervo pessoal de Vilmar Schinke)

Depois da Ponte da Amizade (1965), toda a realidade regional se transformou. Dos pouco mais de 4 mil habitantes que havia em 1950, toda a Tríplice Fronteira contabilizou mais de 76 mil em 1970. A conclusão da ponte foi apenas um trecho da rota terrestre Asunción-Paranaguá.

Como em um efeito cascata, estradas de ambos os lados conectaram o Paraguai e o Brasil. O desejo de abrir uma saída terrestre para o mar se tornou realidade. Essa realidade maior mudou todas as demais, incluindo a de Foz do Iguaçu que deixou de ser voltada para o Rio Paraná.

Vilmar Schinke e a filha
Vilmar, sua filha Veridiana e seu barco em 1988. O gosto pela navegação é uma herança do avô e do pai. Nascido em 1958, o neto de Harry mora em Curitiba e é um dos “guardiões da memória” iguaçuense. As fotos que contam a epopeia das lanchas não seriam possíveis sem o álbum de fotos da família Schinke.
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